segunda-feira, 7 de junho de 2021

Pirata .... e as tempestades de neve


Amigos da pirataria Alada ...meu cordial ..... olá


A primeira tempestade de neve a gente nunca esquece, principalmente se ela ocorre , em voo.


Em janeiro 1986 , como Capitão Tenente da Marinha do Brasil, fui enviado para França para fazer parte de um Grupo de Recebimento de Helicópteros  (6 Super Pumas AS332  e 11 Esquilos Bi AS 355) na Aérospatiale em Marignane, próximo a Marseille ,na região Sul da Provence. Além do recebimento dos 17 helicópteros novos adquiridos pela Marinha do Brasil , eu deveria testar o Dauphin Naval AS366, oferecido pelo mesmo fabricante, numa concorrência contra o Super Lynx WG30 ,da fabricante inglesa Westland.


Quando fui nomeado para compor o Grupo de Recebimento , estranhei considerando que não falava o idioma francês, portanto assumi que a razão da indicação seria pela minha experiência com aeronaves Lynx, tendo suficientes horas  voo por instrumento , características priorizada em todas as aeronaves em questão.

Minha radical mudança de ambiente profissional (do militar para o civil, além da mudança do Brasil para França) , exigiram um grande esforço de adaptação sem perder o foco sobre a finalidade que as autoridades políticas e militares brasileiras vislumbraram , quando decidiram pela opção francesa de um contrato milionário. Dessa forma me esmerei nos detalhes que seriam de interesse brasileiro.


Depois de adquirir um mínimo de domínio do idioma francês , passei a questionar a fabrica francesa sobre alguns pontos do contrato que , de acordo com a minha opinião profissional , eram desvantajosos para a Marinha do Brasil. Para todas essas discussões os representantes dos franceses , se defendiam dizendo :



« Je suis désolé… mais le contrat a été signé par les autorités de la marine brésilienne, et il ne peut pas être modifié ! Contrat...est contrat"

Assim fui obrigado a aceitar as condições contratuais , contrárias ao meu entendimento profissional e pessoal. Engoli todos os “sapos” franceses.


Chegou o dia da minha avaliação do Dauphin Naval oferecido na concorrência internacional. O único Dauphin Naval em condições de voo , pertencia a Marinha da Arábia Saudita . Isso criou um certo problema quando exigi o modelo para testá-lo a bordo de um navio semelhante as nossas Fragatas classe Niterói Brasileiras. Depois de muitas discussões e acordos diplomáticos entre Brasil , França e Arábia Saudita , embarquei com o Dauphin Naval árabe numa Fragata francesa para o teste “contratual”.... afinal , contrato... é contrato !



O resultado não foi o esperado pela Aérospatiale. Reprovei o Dauphin Naval por uma série de restrições apresentadas durante o embarque . Essa minha avaliação, meses depois foi respaldada pelo meu guru profissional Russo Postarek, quando numa manobra comercial, pouco comum , apresentaram no Brasil um Dauphin civil modificado para testes.

Dias depois , tive que fazer o
  voo do primeiro Super Puma apresentado para recebimento. Tudo ocorreu bem na parte técnica , mas durante o voo próximo ao paredão de granito da Montanha de Saint Victoire ,próxima a Aix en Provence, eu comecei a perceber algo branco tocando levemente o para brisas da aeronave. Eu estava maravilhado com a dança dos flocos brancos a minha frente , quando o copiloto francês da fábrica , pediu os comandos e visivelmente alterado mudou o rumo e nos dirigiu para pouso em Marignane.



“c'est une tempête de neige qui approche... rentrez chez vous aussi vite que vous le pouvez”

Surpreso, não questionei e cumpri a recomendação do piloto francês. Ele estava certo. As consequências da tempestade de neve foram trágicas na região. As estradas ficaram interditadas pelos veículos movidos diesel que congelavam seu combustível, paravam os motores e eram abandonados por seus condutores para não congelarem sem aquecimento provido pelos aquecedores, com motor em funcionamento. A fábrica parou de funcionar por 5 dias até tudo voltar ao normal. Foi minha primeira tempestade de neve , mas não foi a pior.

Quis o destino (e ele sempre quer) que quase 20 anos depois, já como Veterano da Marinha, nossos caminhos ( meu e da Aérospatiale, agora com novo nome , Eurocopter) se cruzassem novamente.


Em 2005, eu já era, então, um “Pirata Alado“ assumido, piloto civil contratado por um grupo empresarial que adquiriu iates com capacidade de operar helicópteros a bordo, pelo mundo, para gerenciar esta operação em três iates com dois helicópteros: 1Colibri EC 120 a bordo dos iates: Arpoadora, no Brasil , e Trindade no Caribe além de 1 esquilo AS 350 B2 a bordo Iate Karima , de bandeira de registro de Bermudas ( assim como a matrícula do helicóptero ) que operaria em qualquer parte do mundo.


O Colibri era um moderno helicóptero pequeno de fabricação francesa entregue a mim pela , subsidiaria brasileira da francesa Aérospatiale / Eurocopter ,que se mostrou perfeito para a Operação , ao nível do mar, a bordo de iates de 50 pés. Esse sucesso incentivou os empresários a adquirirem um Esquilo B2 (mais potente) para operar no Karima de 120 pés em qualquer lugar do mundo. A configuração técnica e negociação com o fabricante , desta nova aeronave caberia a mim, levando em conta minhas experiências anteriores com os franceses.

Resolvi , por conveniência, negociar com a subsidiaria brasileira . Ao final , depois de concordarmos com configuração técnica e preço , solicitei que após a montagem no Brasil, a aeronave fosse entregue na sede de Marignane (minha velha conhecida) . Essa exigência foi feita em função da aeronave portar matrícula de Bermudas além de iniciar a operação a bordo do Karima em águas Europeias , próximo à Ilha de Elba. Não houve nem um tipo de restrição a essa minha exigência. Assim, a cláusula constou do contrato , sem restrições. Acompanhei e me qualifiquei no B2 em Itajubá , sede da subsidiaria, quando autorizei o transporte para Marseille (porto de recebimento, na França, da fabricante Aérospatiale).

No dia marcado para o recebimento , me apresentei em Marignane pronto para executar o voo de recebimento e verificação das condições técnicas da aeronave que havia embarcado num navio e cruzado o oceano Atlântico, de acordo com a clausula contratual. Para minha surpresa o funcionário francês de “livraison” (entrega de aeronaves) ainda era o mesmo de 20 ano anos atrás e lembrava-se de mim , dos tempos de Marinha. Ele foi muito educado e atencioso quando apresentou a aeronave no hangar VIP , para que eu posasse para foto ao seu lado segurando as chaves da aeronave. Depois da cerimônia me apresentou um documento para assinatura de entrega que , educadamente recusei , alegando que a assinatura só seria feita , depois do voo de recebimento. Surpresa geral !!! . O antigo funcionário , ainda surpreso disse que não seria feito um voo de entrega porque a aeronave havia sido montada pela subsidiaria. Eu sem mover uma ruga do meu semblante peguei o contrato e apresentei a ele dizendo :

« Je suis désolé… mais le contrat a été signé par les autorités de la filiale  brésilienne, et il ne peut pas être modifié ! Contrat...est contrat".

Depois de algumas conversas , me pediram 20 dias para fazerem os acertos internos que permitisse o voo de recebimento , de acordo com o contrato. Concordei e fui para Livorno na Itália para conhecer a tripulação do Karima que estava no estaleiro recebendo os últimos retoques.

20 dias depois executei um voo de 1 hora em Marignane, com um piloto da fábrica ao meu lado fazendo a fonia com o aeroporto de Marseille, chamando a torre com uma matrícula francesa provisória da fábrica. Tudo correu perfeitamente e assinei o recebimento sem maiores problemas. Quando perguntado para onde iria , respondi que para Cannes , num voo visual de 30 minutos. O piloto que me acompanhava se ofereceu para ir comigo já que morava lá e aproveitaria a carona. Agradeci e concordei , porque meu “francês” estava meio enferrujado e seria bom ter a companhia dele fazendo os contatos com a torre. Pousamos em Cannes logo depois. Agradeci a companhia , ele agradeceu a carona retirou a matrícula francesa provisória da fabricante que ainda estava colada na estrutura da aeronave , e se foi.


No dia seguinte embarquei no Karima próximo a Ilha de Elba e fomos para a Grécia. A temporada de verão foi ótima voando na Turquia , Croácia e terminando na Itália, quando  em novembro retornei para Cannes para manutenção e abandono da Comunidade Europeia. Deveria me deslocar para a Suíça porque a ” Importação Temporária” de 6 meses venceria naquela semana. A matrícula estrangeira de Bermudas do helicóptero exigia esse movimento burocrático para a Suíça , que não pertence a Comunidade Europeia.


A previsão meteorológica previa a aproximação de uma tempestade de neve o que me obrigou a planejar decolagem antes que ela me pegasse em Cannes. O voo para Genève, estava previsto para 1 hora e 45 minutos no rumo norte (fugindo da direção da frente nevada).Contratei um piloto francês para me ajudar na rota alpina da Suíça, já que eu nunca a havia voado. A sereia Pi estava comigo, aproveitando o fim das minhas atividades de verão e agora estava pronta para me acompanhar nas atividades de inverno suíço. Meu fiel escudeiro Humberto (mecânico do B2) nos acompanhava quando chamei a torre de Cannes para acionar e autorizar meu plano de voo. A torre não autorizou a minha partida e solicitou meu comparecimento a sala de tráfego.

Preocupado com o atraso e a aproximação da tempestade de neve corri para a sala de tráfego tentando imaginar qual era o problema. Recebi uma rápida explicação:

A minha aeronave havia pousado a primeira vez em Cannes com uma matrícula francesa e havia decolado com matrícula de Bermudas, portanto de forma irregular. Assim sendo , a Diretoria de Aviação da França foi pesquisar e descobriu que a aeronave havia entrado na França como carga pelo porto de Marseille , portanto teria que voltar a Marignane para regularizar a situação antes de ir para qualquer outro lugar. Ponderei que se aproximava uma tempestade de neve nessa direção. Meu apelo não surtiu efeito. Me martirizei por não ter previsto isso em contrato!

Fiz minha avalição da situação, comentei com meu copiloto francês recém-contratado que concordou em nos dirigirmos imediatamente a Marseille num rápido voo de 25 minutos em máxima velocidade. Decolamos eu no comando, meu copiloto francês fazendo a fonia, o escudeiro Humberto e a Sereia Pi de passageiros e tranquilos por não entenderem a confusão armada no idioma francês. O dia estava lindo até encontrarmos com os primeiros flocos de neve. Pela minha experiência anterior há 20 anos , diminui a velocidade e baixei para 200 pés sobre a Autoroute que nos levaria direto a Marseille ( o B2 não é homologado para voo IFR por instrumentos). A visibilidade degradou rapidamente causando apreensão de todos a bordo. Reduzi ainda mais a velocidade e baixei para 100 pés sobre a Autoroute. Meu copiloto mantinha contato pela fonia com Marseille que estimava mais 5 minutos para pouso. Neste momento percebi que passava ao lado de uma instalação industrial , cuja chaminé se perdia em meio a tempestade de neve que agora já nos atingia em toda a sua intensidade. Logo a frente percebi torres de alta tensão cujos fios , certamente cruzavam a estrada e não estavam no meu visual. O silencio a bordo só era quebrado pelo barulho do motor , quando decidi cumprir o procedimento de segurança para esse extremo caso, aprendido na Marinha. Acendi todos os faróis disponíveis em máxima intensidade , reduzi ainda mais a velocidade e mantive o olhar fixo numa das torres de alta tensão e comecei a subir devagar em direção ao topo da torre . Ali não haveria fios invisíveis, e estaria a menos 5 minutos de um voo por instrumentos de Marseille. Foi aí que aconteceu :

Uma forte de luz de um farol apareceu entre os flocos de neve exatamente na minha frente. Parei o helicóptero mantendo o topo da torre no visual e a luz, que pude identificar como sendo de outro helicóptero na minha frente, na mesma situação , em sentido inverso . Era um Alouette da Armée de L’air (Exército Frances) que trafegava em frequência militar , portanto inaudível por mim assim como pelo controle de Marseille. Nesse momento , numa fração de segundo decidi me afastar da ameaça a frente tentando voar para trás mantendo a torre metálica no visual e baixar devagar a altitude até ter visual de um local para pouso.

Nesse momento delicado e crítico , o helicóptero começou a trepidar completamente e eu não conseguia controla-lo. Sem entender o que estava acontecendo olhei para o copiloto francês ao meu lado que com olhos esbugalhados  se agarrava com as duas mãos o cíclico de controle puxando com força para trás com olhar fixo na torre metálica a sua frente. Quando identifiquei a causa do descontrole não me restou outra alternativa  e gritei:

“ Lâchez! ... Lâchez!...Lâchez! “


Ao mesmo tempo dei-lhe uma porrada no antebraço. O helicóptero deu um tranco e ele largou o cíclico. Foi o suficiente para eu adquirir o controle da aeronave novamente, muito próximo do solo sobre a Autoroute e conseguir manobrar o helicóptero para o estacionamento de um hotel Etap de beira de estrada.

 Pousei no gramado próximo aos carros. Antes de cortar o motor da aeronave consegui falar com a torre de controle de Marseille, dando nossa posição de pouso seguro e perguntando se haveria consequências por ter pousado num estacionamento de carros de propriedade privada. A torre respondeu que caso o proprietário concordasse , não haveria nenhum problema , mas caso contrário , eu teria que decolar.

Com o proprietário concordando , ou não, ...eu não decolaria naquelas condições ... nem a PAU ... JUVENAU !!!, pensei.

Quando sai da aeronave minhas pernas tremiam . Ninguém falava nada, e nada foi dito sobre o ocorrido. O importante é que estávamos todos vivos , e com frio.


O Hotel estava fechado . Batemos na porta procurado abrigo como se pousar um helicóptero no estacionamento de carros fosse a coisa mais normal do mundo. Uma senhora abriu uma fresta de porta para comunicar que o hotel só abriria a partir da 15 horas, olhando para o helicóptero . Argumentei que estávamos com frio e se poderíamos entrar para nos aquecer e aguardar 2 horas até o hotel abrir , aquecidos. A gentil senhora francesa , permitiu que o helicóptero ficasse pousado e que nós pudéssemos ter acesso a uma sala onde havia uma máquina de sopa acionada por moedas . As 15 horas pontualmente ela nos atendeu oferecendo quartos para pernoite , com pagamento antecipado. Compreensivo. Poderíamos fugir “voando” sem pagar .

Entrei em contato com o despachante da fabricante francesa contando nossa situação. Ele disse para ficarmos tranquilos porque iriam enviar um funcionário de carro pegar os documentos da aeronave e rapidamente resolveriam a situação liberando nossa decolagem para a Suíça.

 


Fiquei imaginando e me recriminando por não ter previsto essa situação tão simples e fazer constar no Contrato.  Seria apenas um detalhe jurídico, que evitaria uma possível tragédia. Na outra encarnação eu vou investir num bacharelado de direito. É mais seguro.



Descobri que havia perto do hotel uma churrascaria. A noite foi muito alegre. Comemos muita carne acompanhada por vinho nacional para comemorar a primeira noite do resto de nossas vidas.


No dia seguinte com sol brilhando e o helicóptero coberto de gelo que derretia decolamos tranquilos para cumprir a última missão daquela temporada.

Ao meu amigo e escudeiro Humberto e a minha querida Sereia Pi, meu profundo reconhecimento pela postura digna  e silenciosa, no momento de tensão, permitindo um desfecho ...aceitável. Foram perfeitos companheiros de aventura.

Ao meu copiloto francês alugado, desejo vida longa (talvez em outra profissão).



A primeira tempestade de neve...a gente nunca esquece ....

 a segunda ... eu não gosto nem de lembrar.







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Pirata Alado